A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne

Resenha de Carlos Graieb publicada na edição de VEJA de 31 de agosto de 2011:

O adultério foi um dos grandes temas da ficção do século XIX, e A Letra Escarlate(tradução de Christian Schwartz; Penguin/Companhia; 332 páginas; 27 reais), do americano Nathaniel Hawthorne (1804-1864), parece, à primeira vista, pertencer a essa linhagem.

É para marcá-la como adúltera que a heroína Hester Prynne se vê condenada a sempre usar em suas roupas um “A” escarlate, ricamente bordado. O romance, no entanto, se liga de maneira enviesada à tradição. As angústias e vicissitudes de um casamento infeliz são apenas sugeridas. A mecânica do amor proibido — as hesitações, a sedução, o arrebatamento — está ausente da história, que começa mais tarde, com a punição.

Por fim, a intenção crítica de Hawthorne não coincide com a de seus pares. De Madame Bovary, de Flaubert, a O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, os mais célebres romances de adultério têm por alvo uma sociedade que os autores julgam hipócrita, e da qual são contemporâneos.

Hawthorne situa a sua história no passado, na Boston puritana do século XVII. Os puritanos nada têm de hipócritas. Eles levam o pecado absolutamente a sério — é isso, inclusive, o que os define. É a maneira como o indivíduo negocia sua liberdade com o grupo — a maneira como a liberdade do indivíduo pode crescer sem que a sociedade se rompa — que preocupa Hawthorne. Nisso ele se mostra um escritor do seu país. Clássico americano, A Letra Escarlate só agora passa a contar com uma edição decente no Brasil.

O livro começa diante das portas da prisão de Boston, onde uma turba vestida de cores soturnas e chapéus pontudos aguarda a saída de Hester Prynne. É fora, e não dentro dos muros, que o castigo será aplicado. Marcada com a letra escarlate, Hester terá de viver isolada com a filha Pearl, nascida do seu relacionamento secreto. A desonra lhe impõe um enorme sacrifício, mas há algo nela que não se curva. “A lei do mundo não era a lei da sua mente”, diz o narrador. Internamente, Hester não aceita o seu estigma, e é por isso que o sentido da letra vai mudar, aos poucos, também para o mundo externo.

Essa transformação se deve inteiramente à força do caráter de Hester. Ela não encontra nenhum apoio nos personagens masculinos, que, comparados a ela, são figuras cinzentas. Chillingworth é um homem velho, cerebral e incapaz de amar. Desposou Hester, muito mais jovem, na Inglaterra, mas ninguém no Novo Mundo para onde eles se mudaram sabe disso – o que sugere que antes do início do romance, e antes do adultério, Hester já havia sofrido uma espécie de desterro emocional. Dimmesdale, o pregador com quem Hester viveu sua paixão, aceita o ponto de vista da comunidade e da religião e se consome na culpa, incapaz de revelar que é o pai de Pearl.

Não convém entregar as peripécias do livro. Mas não há final feliz nesta história de amor que Henry James, grande admirador de Hawthorne, descreveu como uma das “mais tristonhas” já escritas em inglês. No desfecho, depois de partir por algum tempo, Hester retorna a Boston e à letra escarlate. Como diz o narrador, nem o mais severo magistrado lhe teria imposto tal coisa. A essa altura, porém, o “A” se transformou completamente, para indicar uma espécie de anjo, sobretudo para mulheres “feridas, abandonadas, traídas, perdidas, ou ainda suportando o medonho fardo de um coração sem amor”, que a procuram em seu chalé para perguntar por que são tão infelizes.

Hawthorne publicou A Letra Escarlate em 1850, o primeiro de cinco anos extraordinários em que todos os grandes gêneros literários encontraram voz própria nos Estados Unidos: o ensaio, com Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, a poesia, com Walt Whitman, e o romance e o conto, com Herman Melville e o próprio Hawthorne. Todos esses escritores se conheceram, conviveram em alguma medida e se ocuparam da questão da identidade nacional. Emerson foi a figura dominante do período, um orador de enorme popularidade e influência. É interessante contrastá-lo com Hawthorne. O tom de Emerson é sempre afirmativo. Ele incitava a América a ignorar o passado e seus fardos. Eis uma de suas declarações típicas: “Nossa época é retrospectiva. Ela constrói sobre os sepulcros dos pais. Gerações passadas olharam Deus e a natureza face a face; nós, através de seus olhos. Por que não deveríamos nós também desfrutar uma relação original com o universo?”. Hawthorne nunca acreditou de fato que esse tipo de operação fosse possível. Sua relação com o passado – e por consequência com o presente – era mais ambígua.

Uma anedota e uma citação ilustram essa ambivalência. O nome original do escritor, nascido em 1804, era Hathorne. Por volta dos 23 anos ele modificou essa grafia, acrescentando-lhe um “w” (a sua própria letra escarlate?). Seus biógrafos não conseguiram decifrar a razão da mudança. Talvez Hawthorne quisesse recuperar uma versão mais antiga do nome. Talvez, pelo contrário, tentasse se distanciar de seus antepassados, que estiveram entre os primeiros colonos ingleses no novo mundo (sim, eles eram puritanos; um deles foi juiz no célebre e absurdo julgamento das bruxas de Salem). “Agradeçamos a Deus por ter nos dado ancestrais como os nossos”, escreveu Hawthorne certa vez. “E que cada geração agradeça a Deus, com fervor idêntico, por ter se afastado deles um passo a mais na marcha das épocas.”

Um passo a mais: esta era a visão de progresso de Hawthorne. Sua época não foi apenas a da retórica de Emerson, foi também a dos “reformadores”, que desejavam abolir os vícios e recriar a sociedade. Hawthorne participou de um desses experimentos utópicos e saiu dele com seu ceticismo reforçado.

O que nunca abandonou foi uma ligação com o Partido Democrata que começou na juventude. Hawthorne escreveu a biografia de campanha do presidente Franklin Pierce e ocupou cargos de indicação democrata: foi supervisor da alfândega da cidade de Salem (experiência que ele relata na introdução de A Letra Escarlate) e cônsul americano na Inglaterra. Seu ceticismo comportava a crença na ação política.

São essas crenças na persistência do passado e na necessidade da mudança progressiva e negociada que Hawthorne incrustou no drama de Hester Prynne. Nas últimas páginas, o narrador revela que, quando mais jovem, Hester chegou a acreditar na possibilidade de ser “a profetisa escolhida”. Depois de sua provação, ela mantém a certeza de que uma nova relação entre homem e mulher, “num patamar mais afeito à felicidade mútua”, emergirá um dia, ainda que esse futuro seja indeterminado.

Não é uma conclusão para todos os gostos e idades. Muitos a lerão com impaciência, até com irritação.

Mas não é preciso concordar com os clássicos. Basta seguir o fio luminoso da arte de Hawthorne.

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Versões filmadas:

aletra

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